RESUMO: Considerando
nossas experiências no ensino de Língua, Cultura e História Brasileiras a
jovens brasileiros na cidade de Nova York, refletimos neste ensaio acerca do
papel da memória, enquanto representação seletiva do passado, na construção
duma identidade étnica e nacional de jovens brasileiros migrantes e
transnacionais no ensino secundário. Para isso, optamos pelo exercício da
própria memória na escrita deste texto, relatando as experiências que nos
levaram a desenvolver nossa compreensão da construção identitária étnica e
nacional, esclarecendo, ao mesmo tempo, noções de identificação étnica e
(trans)nacional, além de esclarecer a noção que chamamos de “tradição da
saudade”.
PALAVRAS-CHAVE: tradição
da saudade; identidade; memória; ensino de História.
1. Introdução
Neste ensaio, refletiremos acerca de nossa experiência no
ensino de jovens estudantes brasileiros transnacionais e/ou migrados no ensino
secundário na cidade de Nova York. As reflexões aqui presentes baseiam-se em
nossas próprias experiências como brasileiro transnacional e professor de
alunos imigrantes e transnacionais. Nossa discussão centra-se no papel da
memória enquanto uma representação seletiva do passado e enquanto eixo na
(re)construção e (re)interpretação de identidades étnicas e nacionais.
Para nossa reflexão acerca desse papel desempenhado pela
memória, fazemos uso do relato de nossas próprias experiências, emoldurado
pelas perspectivas da antropóloga Loretta Baldassar acerca da construção da
identidade transnacional, e das perspectivas das psicólogas Karmela Liebkind e
Jean Phinney sobre a construção da identidade étnica e nacional de adolescentes.
A linha condutora de nossa reflexão é a de que a construção de identidades
transnacionais se dá por meio da experiência daquilo que aqui chamamos de tradição
da saudade.
Por este texto ser uma reflexão acerca da memória
enquanto meio de construção identitária, escolhemos fazer uso dela mesma para a
elaboração de nossas ideias. Sendo assim, é através de uma narração de nossas
próprias lembranças das experiências que tivemos com um grupo específico de
alunos que esperamos refletir sobre o tema que aqui discutimos.
2. Definições iniciais
Muitas vezes, ao refletirmos acerca da relação entre o
ensino de História e o processo de construção identitária no ambiente escolar,
podemos não avançar além da noção já bem estabelecida deste processo como
referindo-se apenas à identidade nacional. Essa perspectiva de “identidade”
como uma referência à nacionalidade está frequentemente limitada pela concepção
dominante na sociedade como um todo, e na escola em particular, da unicidade da
identidade étnica brasileira.
O mito da unicidade étnica parece servir como pano de
fundo para o que poderíamos chamar aqui de tradição memorial da escola
brasileira – a memória social como construída na escola. Assim, nossa tradição
memorial escolar ensina que o “povo brasileiro” foi formado por apenas três
grupos distintos (portugueses, índios, negros); fala uma única língua (a
“língua portuguesa”); professa apenas uma religião (o cristianismo); e está
unido por traços culturais comuns (aqueles característicos dos grandes centros
urbanos de influência). Como eixo central dessa concepção identitária
encontra-se, além das características citadas, a visão dos laços de
territorialidade – ou seja, é brasileiro aquele que nasceu em território
brasileiro.
Pensamos em memória aqui como um termo detentor de
dois sentidos básicos: [1] como uma capacidade peculiar à espécie humana de
processar – biológica, social, cultural e historicamente – nossa percepção do
mundo (BOCK et al., 2009, p. 157); e, [2] como uma representação seletiva do
passado por parte dum indivíduo (ou comunidade) contextualizado num ambiente
familiar, social, nacional (ROUSSO, 1992). O segundo sentido é o que mais
interessa-nos em nossa presente reflexão.
A memória, enquanto representação seletiva do passado, é
elemento constituinte do processo de formação da identidade (étnica ou
nacional) dum indivíduo. Ela desempenha um papel (quiçá primordial) nos laços
de sentido construídos entre um indivíduo e sua comunidade. Esses laços, cujas
representações poderiam ser encontradas em experiências objetivas ou
subjetivas, são o que chamamos aqui de identidade.
Faz-se necessário, ainda, definirmos o sentido que
queremos dar à ideia de etnicidade que nos acompanhará no decurso de nossa
reflexão. Identidade étnica refere-se ao sentimento que tem um indivíduo de
pertencer a um grupo étnico particular (LIEBKIND, 1992, 2001; PHINNEY, 1990). A
identidade étnica é geralmente vista como aglutinadora de vários aspectos, como
auto-identificação, sentimentos de pertencimento e comprometimento a um grupo,
valores comuns, e atitudes para com o próprio grupo étnico. Aqui, usaremos os
termos etnia, etnicidade, grupo étnico, ou identidade
étnica para nos referirmos a subgrupos dentro de um contexto maior (por
exemplo, nação) que reclamam uma origem comum e partilham de um ou mais dos
seguintes elementos: cultura, religião, língua, parentesco, e lugar de origem.
É importante estabelecer que a diferença entre identidade étnica e identidade
nacional, aqui, é que a segunda consiste numa construção muito mais
complexa, envolvendo sentimentos de pertencimento e atitudes para com a
sociedade como um todo, extrapolando o círculo étnico com o qual se identifica
mais estreitamente o indivíduo (PHINNEY, DEVICH-NAVARRO, 1997).
Considerando a noção que adotamos para a ideia de
etnicidade, podemos afirmar que há uma multiplicidade étnica na sociedade
brasileira que, de forma geral, não é prevista pela tradição memorial da
escola, especialmente no ensino de História. Ou seja, os brasileiros sobre os
quais fala a História ensinada na escola não são aqueles de outras origens que
não aquelas do tradicional racialismo tripartite; não são os brasileiros que
falam outras línguas maternas que não a que se chama de língua portuguesa
(populações indígenas, populações de fronteiras, comunidades de imigrantes no
Brasil, e os brasileiros emigrados e transnacionais); não são os adeptos de
outras religiões minoritárias (especialmente o judaísmo, o islã, e as tradições
orientais trazidas por imigrantes asiáticos) praticadas no Brasil do passado ou
de hoje; não são os brasileiros cujo contexto cultural não se encaixa nos
moldes estereotipados duma suposta “brasilidade”; e muito menos, são os
brasileiros emigrados e transnacionais, cuja participação na identidade
nacional é ignorada pela citada tradição memorial escolar, apesar de ser
reconhecida pela tradição jurídica brasileira[1]. Esse esquecimento duma
parcela dos brasileiros na tradição memorial escolar torna-se visível mais
claramente nos livros didáticos usados para o ensino histórico; livros esses,
cuja narrativa exclui aqueles brasileiros supracitados.
O adjetivo transnacional
refere-se, aqui, especificamente aos brasileiros nascidos no exterior, ou
detentores de cidadania do país receptor (se brasileiros emigrados), e que
ainda mantêm laços identitários com sua cultura de origem, ao mesmo tempo em
que também se identificam como nacionais do país onde nasceram ou onde se
naturalizaram.
3. A tradição da saudade na
construção identitária transnacional
Aqui, refletiremos acerca das relações possíveis entre a
memória (como representação seletiva do passado), a experiência transnacional e
o ensino escolar de História como instrumento na construção de uma identidade
transnacional de jovens brasileiros emigrados ou filhos de brasileiros na
região metropolitana de Nova York, Estados Unidos. Os jovens aos quais fazemos
menção neste ensaio, frequentaram o ensino secundário em escolas públicas de
Nova York nos anos letivos de 2004 e 2005, tendo participado de aulas de
“Língua, Cultura e História Brasileiras” oferecidas como um programa opcional
para estudantes de high school[2]. Os alunos
matriculados nesse programa somavam um total de quinze jovens, sendo nove moças
e seis rapazes: três dessas moças e dois desses rapazes, nasceram nos Estados
Unidos – sendo filhos de pais brasileiros emigrados –, enquanto dez deles – seis
moças e quatro rapazes – nasceram no Brasil, tendo chegado aos Estados Unidos
antes dos dez anos de idade.
Participamos como colaboradores nesse projeto de ensino
de “Língua, Cultura e História Brasileiras”, que surgira com patrocínio de uma
comunidade religiosa com grande concentração de brasileiros e uma high
school, em Nova York, e que foi desenvolvido durante os anos letivos de
2004 e 2005. As experiências dos participantes naquele programa (professores e
estudantes) auxiliaram as citadas comunidade religiosa e escola a refletirem
acerca das necessidades dos jovens identificados como brasileiros em seu meio,
tendo transformado algumas de suas conclusões em solicitações às autoridades
municipais.
Nossa experiência naquele programa de educação
transnacional envolveu um estudo comparativo e discussão sobre a imigração nos
Estados Unidos e no Brasil. Durante as discussões sobre o tema, frequentemente
veio à tona a maneira como a questão da identidade nacional era encarada por
brasileiros e por norte-americanos. Ao término daquela unidade temática,
requisitamos dos alunos um texto dissertativo sobre a experiência migratória.
Todos os textos versaram ao redor de dois temas principais: o que era ser
brasileiro em uma terra estrangeira, e o que era ser um cidadão americano de
origem brasileira numa cidade com tanta diversidade cultural quanto Nova York.
Os textos escritos pelos alunos daquele programa, assim
como as discussões que frequentemente mantínhamos em classe, faziam um uso
recorrente da palavra inglesa 'home' (lar/casa, em
português). Além disso, era também recorrente a comparação do 'aqui'
versus 'lá' – com o sentido geográfico sendo, muitas vezes, alterado: o
'aqui' podendo significar os Estados Unidos ou o Brasil, dependendo do
histórico pessoal de cada aluno e do aspecto histórico-cultural que estava em
discussão, e vice versa.
As experiências que tivemos, em sala, com aqueles alunos
parece-nos apontar que a ideia de nacionalidade está sempre ligada ao
sentimento de “lar”. Enquanto a noção de identidade étnica não requer
necessariamente uma memória de localização geográfica, a identidade
nacional parece sempre exigir a dicotomia 'aqui' versus 'lá',
criando uma divisão externa para limitar-se identitariamente. A construção
dessa dicotomia já havia sido apontada como uma marca da experiência migratória
pela antropóloga Loretta Baldassar (1997, p. 70), quando escreveu que “a
migração não consiste simplesmente na partida e no estabelecimento de um lar em
um novo país. Consiste também nos laços com a antiga terra natal e na
influência dessa ligação no desenvolvimento da identidade étnica na nova
pátria”.
Na experiência de muitos transnacionais, a migração
carrega em si um elemento de trauma, causado pelo abandono do que antes era
familiar na antiga pátria. A memória exerce para esses uma função de ligação
com os lugares e pessoas que ficaram para trás, e, assim, pode ser dolorosa, já
que é uma lembrança do que está ausente no presente; ao mesmo tempo em que
exerce uma função enraizadora numa identidade cultural íntima, ligada a uma
história pessoal e a um senso de pertença em meio à mudança. A essa experiência
específica da memória daremos aqui o nome de tradição da saudade.
Pessoalmente, experienciamos essa tradição da saudade
em diferentes direções em nossas vivências migratórias, assim como também
testemunhamos a experiência de jovens que passaram por vivências semelhantes.
Em meio a essa crise enfrentada pelo migrante, qualquer ligação com a cultura
de origem pode servir de suporte para a construção da nova identidade, que
poderá ser repensada e reconstruída muitas vezes, dependendo de como se
configure(m) a(s) experiência(s) migratória(s) do indivíduo. Algumas dessas
ligações, na experiência de nossos alunos em Nova York, eram as próprias aulas
de “Língua, Cultura e História Brasileiras”, o envolvimento com a comunidade
brasileira local, uma ligação com as tradições religiosas de origem, e um
contato com a cultura brasileira produzida nos Estados Unidos e/ou no Brasil.
Há jovens brasileiros, entretanto, que passam por
experiências migratórias mais complexas. Como exemplo, poderíamos citar um de
nossos alunos no programa, que aqui identificaremos pela inicial de seu
primeiro nome – “A” –, que apesar de haver nascido no Brasil, tinha pai
norte-americano e mãe uruguaia. Além dessa transnacionalidade familiar, sua
família era judia ortodoxa, o que acrescentava um elemento a mais na
complexidade étnica que o circundava. “A” viveu no Brasil até os quatro anos de
idade, quando mudou-se para Israel – tendo lá vivido até os nove –, e
posteriormente mudou-se para os Estados Unidos. Ou seja, para ele, a construção
duma identidade nacional não era algo fácil, já que possuía ligações a diferentes
lugares, e falava diferentes línguas. Além de todas essas marcas identitárias,
“A” vinha de uma família que enfatizava muito fortemente sua etnia judaica, o
que o distanciava ainda mais da concepção de unicidade étnica brasileira. Sua
família, seus amigos, e mesmo outros alunos do programa, não o viam como
brasileiro, apesar de ele perceber-se plenamente como tal, o que aparentemente
confirma a sugestão de Phinney (1990) de que a auto-identificação étnica de um
indivíduo pode ser diferente daquela percebida por outros.
Que relação poderia ter o ensino de História com a
construção duma identidade transnacional naqueles estudantes, levando-se em
consideração o fato de o programa ter tentado criar diálogos entre as histórias
brasileira e norte-americana para aqueles jovens migrantes? Há alguma vantagem
num empreendimento como esse para a criação ou fortalecimento de laços
culturais entre jovens brasileiros emigrados e seu país de origem? Essas
questões se repetiram durante todo o nosso envolvimento com o programa, já que
alguns professores acreditavam que, para os jovens migrantes, o essencial seria
a integração à cultura na qual estavam agora inseridos. Para um outro grupo, o
contato com a cultura nacional de origem – o que inclui uma apreciação pela língua
e história, por exemplo – contribuiria para que os estudantes pudessem lidar
melhor com sua experiência da tradição da saudade – optando pela
perspectiva assumida por Baldassar (1997, p. 70), como explicada anteriormente.
Nossas próprias experiências transnacionais, e o processo
de construção identitária fluida que delas resultou, forçaram-nos a enxergar a
escola como uma experiência essencial na construção de pontes de ligação não
apenas à cultura na qual tentam se inserir os imigrantes, mas também àquilo que
deixam alhures. Sendo assim, nosso envolvimento anterior com o ensino bilingue
de alunos transnacionais, e posteriormente com aquele programa destinado
especificamente a jovens estudantes brasileiros baseava-se na concepção
defendida por Loretta Baldasser de que a ligação com a cultura de origem
influencia (positivamente, em nossa opinião) o desenvolvimento da nova
identidade étnica ou nacional.
4. A tradição da saudade e a
(re)construção e (re)interpretação de representações memoriais
Como a memória tem sua base referencial no passado, ela é
flexível, enquanto material para a construção de interpretações do passado e do
presente. “Memórias, imagens, identidades construídas são sempre incompletas
porque correspondem a uma multiplicidade de experiências vividas por indivíduos
e grupos sociais que não se encontram parados no tempo, mas em contínua
transformação” (SANTOS, 1998, p. 11). A memória é, assim, inacabada.
Essa fluidez memorial desempenha, como consequência, um
papel marcante na compreensão que o migrante tem de sua própria identidade
nacional, enquanto estando geográfica e temporalmente alhures. Sua
interpretação da memória identitária nacional – que não se baseia
necessariamente em experiências objetivas pessoais – é influenciada e, até certo
ponto, moldada pelas experiências do presente, quando pensamos em migrados que
estejam no país receptor há muito tempo. Para transnacionais, a interpretação
dessa memória identitária nacional depende, frequentemente, daquela assumida
por sua própria família e sua comunidade migrante, já que essas representam a
ligação mais imediata que possuem com a cultura de origem da família.
Nesse cenário de construção de representações memoriais e
de (re)interpretações das mesmas, destaca-se o ensino direcionado a
determinados grupos étnicos em países com grande movimentação imigratória, como
os Estados Unidos. Esse tipo de ensino, que, em muitos casos, resume-se a um
programa de aulas bilingues, muitas vezes funciona como locus de
transição para uma assimilação identitária em jovens migrantes, ao mesmo tempo
em que funciona como um território de tensão identitária para jovens
transnacionais (CUMMINS, 1989; PHINNEY, DEVICH-NAVARRO, 1997).
Em nossa experiência no programa de “Língua, Cultura e
História Brasileiras” em Nova York pudemos presenciar o impacto causado em
nossos jovens alunos o fato de explorarem aquele território de tensão. Para a
maioria deles, aquela era a primeira oportunidade de encararem-se como estrangeiros
de forma mais ampla, já que, em seus relatos, na escola eram sempre apontados
como latinos e nunca como especificamente brasileiros; seus
amigos não-hispanos não compreendiam as diferenças étnicas/nacionais entre
brasileiros e hispanos, assim como também não compreendiam as diferenças entre
os vários grupos étnicos/nacionais hispânicos. Por outro lado, para seus amigos
hispanos aqueles jovens brasileiros não eram parte plena de seu grupo étnico,
especialmente se não falassem espanhol – ou, mais propriamente, no caso
específico da comunidade onde ensinávamos, spanglish[3]
–, o que, para muitos deles, funcionava como uma pressão a mais em sua
construção identitária étnica/nacional: alguns sofriam a pressão no lar para
serem mais brasileiros, a pressão dos amigos para se encaixarem em algum grupo
aceitável, e a pressão da sociedade como um todo para serem “americanos” (o
que, grosso modo, significava falarem inglês fluentemente e se portarem de
maneira aceitável para os padrões culturais estadunidenses).
Toda essa pressão sofrida por aqueles jovens – pressão
essa que sempre testemunháramos, enquanto ensinávamos a alunos transnacionais,
mas que parecia ser muito maior no caso de nossos outros alunos em situação
ilegal no país, e que, por essa razão, não se encaixariam em nossa presente
noção de transnacionalidade – parecia só reforçar a noção de nossos colegas
professores que se opunham àquela forma de ensino. Em muitas ocasiões, ouvimos
que aquele tipo de programa era um desperdício e um retrocesso, já que (para
esses colegas) o papel da escola era absorver esses alunos e fazê-los
juntarem-se ao mainstream da sociedade norte-americana, e não o de
reforçar as diferenças. Em alguns momentos anteriores àquele envolvimento nesse
programa, observando o desempenho de grupos de alunos em disciplinas como
Língua Inglesa e História dos Estados Unidos, receamos que o ensino bilingue
fosse realmente um problema em termos de levá-los a uma integração com a
sociedade na qual viviam agora. Entretanto, o programa de “Língua, Cultura e
História Brasileiras” era uma tentativa de sairmos daquele velho formato de
ensino bilingue, até aquele ponto tão característico de grandes centros
migratórios nos Estados Unidos.
Em nossas discussões em sala, tínhamos a oportunidade de
tratar o Brasil a partir de diferentes temas como o processo de colonização, a
escravidão, a imigração, a industrialização, os problemas urbanos, o êxodo
rural, a democracia, a violência urbana, as desigualdades sociais, e as
questões ambientais – dando especial ênfase à vida no Brasil dos dias atuais.
Em nossas aulas, usávamos livros de ficção e não-ficção, recortes de jornais,
artigos de revistas, filmes, cenas de telenovelas e comerciais de televisão,
fotografias, cartões postais, música, e outros materiais produzidos no Brasil.
Além disso, usávamos também materiais produzidos nos próprios Estados Unidos,
como referências em livros didáticos e reportagens de televisão, além de
artigos na imprensa – e a partir disso, discutíamos a maneira como o Brasil era
retratado em seu próprio território e no exterior. Os alunos visitavam
atividades culturais da comunidade brasileira, e recebiam a visita de
brasileiros envolvidos com a comunidade brasileira local.
A resposta dada pelos alunos às provocações causadas pelo
que líamos, assistíamos, ouvíamos, visitávamos e posteriormente discutíamos em
classe era suficientemente convincente para que pudéssemos afirmar que um
trabalho como aquele, mesmo que não tivesse uma aparente importância acadêmica,
colaborava na (re)construção e (re)interpretação dum lado identitário que, para
alguns de nossos alunos, estava esquecido em decorrência da distância e tensão
do viver num confuso território de múltiplas identidades que tinham a
necessidade de serem manifestas.
A mobilização das competências não
apenas cognitivas, como também emocionais, causada por aquele aprendizado
construído em conjunto, faz-nos lembrar das palavras do filósofo francês, que
escreveu: “O movimento, por sua vez, implica uma pluralidade de centros, uma
sobreposição de perspectivas, um emaranhado de pontos de vista, uma
coexistência de momentos que essencialmente distorcem a representação”
(DELEUZE, 1994, p. 67).
A representação do eu, como um
indivíduo modelado por e construtor duma identidade étnica e nacional é um ser
em movimento. Entretanto, esse movimento é ainda mais intensificado quando
pensamos num indivíduo moldado pela experiência migratória, que expõe-se a
diferentes “centros” de influência. Essa não é uma experiência que possa ser
apenas especificada na individualidade, pois é característica da experiência
migratória universal. Essa é aquela experiência que chamamos de tradição da
saudade: a lembrança do que ficou para trás, a realidade manifesta
na vivência do agora, e, como resultado da tensão criada por essas duas, uma
identidade própria – que, enquanto se enraíza no presente, visita o passado
para criar novos sentidos em meio a todas as mudanças. Essa experiência
marcava-nos naquela turma: professor e alunos.
O Brasil que enxergávamos juntos, e
o sentido de ser brasileiros que alcançávamos, não eram os mesmos que seriam
enxergados e alcançados pelos brasileiros no Brasil. Além de serem brasileiros,
aqueles jovens eram construtores habilidosos de pontes culturais e diplomáticas
– e não apenas na comunidade escolar, mas também no seio de suas próprias
famílias. Eram políticos que se engajavam na sobrevivência dentre diferentes
momentos que “distorciam” sua representação memorial. Eram brasileiros
emigrados e transnacionais que se arriscaram a descobrir um pedaço deles
mesmos. E mais ainda, eram brasileiros esquecidos e ignorados pela tradição
memorial do Brasil como um todo, e da escola brasileira em particular.
5. Considerações finais
No mundo cada vez mais globalizado
no qual vivemos, onde há uma contínua movimentação migratória ocasionada pelas
mais diferentes razões, é importante pensar acerca do sentido da identidade
étnica e cultural. O Brasil, que apesar de ter sido historicamente um
importante pólo de recebimento de imigrantes, é hoje um importante portão de
emigração, com brasileiros vivendo em todos os continentes do globo.
O que esperamos dos pequenos
brasileiros que hoje vivem no exterior e dos brasileiros que nascerão no
exterior nas décadas adiante? Que tipo de apoio nossa tradição memorial
oferecerá a esses brasileiros que, provavelmente, também experimentarão a
confusão da tradição da saudade? Diremos algo sobre eles nos nossos livros
didáticos? Ou continuaremos a ignorá-los, assim como ignoramos as comunidades
de imigrantes em nosso país e os brasileiros da fronteira?
As responsabilidades que aguardam um
país que deseja se destacar no cenário internacional, incluem o cuidado com
todos os seus nacionais – estejam eles em seu território ou alhures.
Acreditamos que disponibilizar meios para que os brasileiros que estão em
outras terras possam aprender algo sobre sua herança – como sua língua, cultura
e história –, é algo que deve fazer parte dos planos do Estado brasileiro.
Enquanto isso não ocorre – e que provavelmente não ocorrerá brevemente,
considerando que não se investe suficientemente nem na educação dos brasileiros
que estão aqui mesmo –, esperamos que, pelo menos, os autores de livros
didáticos se esforcem para reconhecer em seus textos os brasileiros sempre
esquecidos: aqueles que comunicam-se nativamente em outras línguas que não o
português, aqueles que nasceram e/ou cresceram em outros países ou nas áreas de
fronteira entre o Brasil e seus vizinhos, e aqueles alheios ao estereótipo
cultural atribuído aos nacionais do Brasil, estejam esses aqui mesmo ou em
outras terras.
6. Referências
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2011.
[1] De acordo com a Constituição da
República Federativa do Brasil, Capítulo III, Artigo 12, há duas formas de
aquisição da nacionalidade brasileira: aquela chamada de forma primária ou
originária, que consiste na utilização dos critérios do jus solis e/ou
do jus sanguinis; e aquela chamada de forma secundária ou adquirida, que
consiste na naturalização. Quando mencionamos aqui brasileiros nascidos no
exterior, nos referimos àqueles cujo direito à nacionalidade deriva dos
critérios do jus sanguinis, apesar de, não necessariamente, já possuírem
a cidadania brasileira, já que esta, de acordo com a Constituição de 1988
(entre 1994 e 2007), dependia de sua fixação em território nacional. A redação
dada pela Emenda Constitucional de número 54, de 2007, confere a nacionalidade
brasileira também aos nascidos no exterior, de pai ou mãe brasileira, que
tenham sido registrados em repartição brasileira competente (representações
consulares).
[2] A High School corresponde ao
Ensino Médio brasileiro.
[3] Uma mistura informal de espanhol e inglês,
especialmente na fala de jovens hispanos.